quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

"Essa palavra existe?"

Quando as pessoas ficam sabendo que eu trabalho com a língua portuguesa, e pior ainda, quando descobrem que uma de minhas especialidades é mexer com dicionário, invariavelmente vem a pergunta: "Tal palavra existe?" Minha resposta também é invariável: "Claro, ora, você acabou de dizê-la, por que ela não existiria?" Aí geralmente as pessoas estranham e falam: "Mas eu não achei no dicionário" ou coisa parecida. Eu ainda não consegui entender o encadeamento lógico entre as duas perguntas.

Outro dia eu vi um catálogo de variedades de uvas. Era um livro imenso, com mais de 10.000 variedades, com a descrição dos cachos, das bagas, das folhas e até algumas pranchas com os formatos das folhas. Vamos imaginar que o agricultor que planta uvas em sua propriedade resolveu comprar esse catálogo para conhecer as variedades que ele tem. Ele começa a procurar no catálogo e encontra: aqui ele tem uma uva Itália, boa para comer; ali ele tem uma Cabernet Sauvignon, ótima para fazer vinhos; aquela outra, uma Merlot; e por aí vai... Até ele se deparar com uma variedade, lá no meio das plantações, que ele não consegue encontrar no catálogo. Ele folheia o livro todo, com atenção, mas não tem jeito, ele não encontra aquela variedade de jeito nenhum. Qual é a conclusão a que ele chega? Obviamente, aquela videira que ele plantou e cujas uvas ele já comeu várias vezes... não existe!

É óbvio que essa conclusão é absurda. Ninguém jamais pensaria nisso. Várias coisas podem ter acontecido aí: pode ser que o catalogador das uvas, por descuido ou desconhecimento, tenha deixado passar aquela variedade; pode ser que a variedade tenha surgido depois da publicação do catálogo (variedades de uvas surgem com relativa facilidade); pode ser que o catalogador não tenha gostado daquela variedade e não quis incluir na obra; ou qualquer outra explicação, menos que a uva não existe.

Ora, por que com as palavras tem que ser diferente? Se a pessoa pronunciou a palavra, se ela entende o seu significado e a usa normalmente na fala, por que razão ela vai pensar que a palavra não existe? Você pode até dizer que fantasmas não existem, ou que Deus não existe, sei lá, porque são entidades imateriais, e tal. Mas uma palavra pode ser pronunciada, gravada, escrita, e o que mais você quiser fazer com ela; ainda assim você vai dizer que ela não existe?

Do mesmo jeito que pode acontecer com as uvas, os autores dos dicionários podem simplesmente ter deixado passar uma palavra, por desconhecimento; ou a palavra pode ter sido inventada depois da publicação do dicionário. Talvez você mesmo/a a tenha inventado. Afinal, se nós queremos exprimir uma idéia e não temos uma palavra adequada para tanto, basta inventar uma, é muito fácil, qualquer criança sabe fazer isso. Agora, dizer que uma palavra totalmente pronunciável e compreensível não existe só porque não está impressa num livrão de 800 páginas, aí é que não dá...


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